6 de novembro de 2009

Simplesmente Sophia

Dizemos «Sophia» como se esta palavra fosse sinónimo absoluto de poesia.
Dizemos «Sophia» e a nossa memória enche-se do som que as palavras têm.
Dizemos «Sophia» e de repente o ar é límpido, as águas transparentes, há sempre uma casa na falésia e o sol faz rebentar o calor na cal das paredes.
Dizemos «Sophia» e todas as flores e todos os peixes têm nome, e as crianças tornam-se mais ricas quando os encontram.
Dizemos «Sophia» e não precisamos de dizer mais nada.


Alice Vieira

Nasceu no Porto a 6 de Novembro de 1919. Faria hoje 90 anos.
Não carece de grandes apresentações: nome maior da literatura portuguesa, a primeira mulher a receber o Prémio Camões, poeta, contista, tradutora, de voz inteira e vertical que tão exemplarmente cumpriu, tanto na obra como na vida. Falamos, evidentemente, de Sophia de Mello Breyner Andersen para todos simplesmente Sophia.
Prestamos-lhe, hoje, tributo num entrelaçar de sonoridades de palavras limpas e cristalinas, as suas próprias palavras, a palavra essencial de Sophia.



Biografia

Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-te na luz, no mar, no vento.

É-me necessário fazer versos, é-me vedado saber porquê.
Poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens.

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas
E entre quatro paredes densas.

Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar de cor um poema tradicional português, chamado Nau Catrineta.
Tive a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.
Era, de facto, tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a própria respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o ar continha em si.

Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos

Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente.

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é a arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência, nem uma estética, nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca durma, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é levado a ver o espantoso sofrimento do mundo.

Esta gente cujo rosto
às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova.

A poesia é das raras actividades humanas que, no tempo actual, tentam salvar uma certa espiritualidade. A poesia não é uma espécie de religião, mas não há poeta, crente ou descrente, que não escreva para a salvação da sua alma – quer a essa alma se chame amor, liberdade, dignidade ou beleza.

Pudesse eu não ter laços nem limites
Oh vida de mil faces transbordantes
P'ra poder responder aos Teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes.

A cultura é uma das formas de libertação do homem. Por isso, perante a política, a cultura deve sempre ter a possibilidade de funcionar como antipoder. E se é evidente que o Estado deve à cultura o apoio que deve à identidade de um povo, esse apoio deve ser equacionado de forma a defender a autonomia e a liberdade da cultura para que nunca a acção do Estado se transforme em dirigismo.

Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas.

Os meninos da nossa escola, como tantos outros, também se espantam com os contos com que Sophia, um dia, embalou os sonhos de seus filhos: A Menina do Mar, A Fada Oriana, A Floresta, O Cavaleiro da Dinamarca…

Comecei a inventar histórias para crianças quando os meus filhos tiveram sarampo… Primeiro, contei todas as histórias que sabia. Depois, mandei comprar alguns livros que tentei ler em voz alta. Mas não suportei a pieguice da linguagem nem a sentimentalidade da "mensagem"; uma criança é uma criança, não é um pateta. Atirei os livros fora e resolvi inventar. Procurei a memória daquilo que tinha fascinado a minha própria infância.





Feliz aquela que efabulou o romance
Depois de o ter vivido
A que lavrou a terra e construiu a casa
Mas fiel ao canto estridente das sereias
Amou a errância, o caçador e a caçada
E sob o fulgor da noite constelada,
À beira da tenda, partilhou o vinho e a vida.


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